FAVELA, GENOCÍDIO E VIOLÊNCIA POLICIAL: ADMINISTRAÇÃO DO TERROR

Por Renato Nunes-Bittencourt



O medo é o grande capital político instrumentalizado pelo autoritarismo, que encontra na sensação generalizada e difusa de incerteza, insegurança, ansiedade e rancor perante ameaças estranhas e imputadas como violentas, o terreno fértil para semear sua doutrina de ódio, de reacionarismo, de agressividade, de degenerescência moral, de truculência e de primitivismo. Todas as garantias e direitos civis são flexibilizados em favor da instauração de procedimentos punitivos que agem em nome da “lei e da ordem”, preservando assim a segurança privada dos cidadãos-consumidores, o valor maior do mercado totalitário. Em uma sociedade estruturalmente desigual, mesmo que os aparatos repressivos conseguissem eliminar todos os focos de criminalidade da cidade, o medo permaneceria presente nas percepções individuais e coletivas acerca do espaço urbano através da eleição de novos inimigos contra os quais as forças letais da máquina destrutiva Estado devem combater, de modo a sempre se manter sob domínio moral as massas sociais. O medo é de suma importância para a manutenção da pujança do mercado capitalista, seja pelo incentivo ao armamentismo social que tanto faz enriquecer os acionistas e os lobistas das indústrias bélicas, seja pela apropriação midiática desse afeto através de emissões histéricas e sensacionalistas que tanto impactam o imaginário social, seja pelas empresas prestadoras de serviços de segurança, seja pela blindagem e customização de automóveis para que estes se tornem mais poderosos e eficientes na luta contra os assaltantes, seja pela alta taxa de consumo de remédios para que o “cidadão de bem” possa dormir razoavelmente tranquilo e sedado e também possa trabalhar cotidianamente sem prejudicar o seu ritmo produtivo por crises de ansiedade ou de depressão.


A lógica de guerra da polícia e das forças armadas é essencial para que a tensão social permaneça sustentada nas ruas, nas avenidas, nas praças, nos becos, em todos os espaços da cidade. A população comum é compreendida como inimiga, não como cidadã participante da construção da sociedade. Ninguém está garantido nessa beligerância generalizada. Conforme argumenta Stephen Graham, “aqueles que não conseguem se sustentar em sistemas cada vez mais privatizados e autoritários se tornam mais e mais demonizados, e sua vida, mais e mais precária” (GRAHAM, 2016, p. 164). O grande escândalo ocorre quando um “cidadão bem-nascido” sofre na carne a agressividade policial, talvez por ser confundida erroneamente com um marginal. A miséria das massas oprimidas pelos aparatos repressivos é diária e invisível, quando consegue furar o bloqueio midiático e incomodar a opinião pública o desastre já ocorreu. Os moradores dos bairros nobres acordam sob o Sol que ilumina a bela paisagem, os moradores das favelas acordam sob as rajadas disparadas de helicópteros, em uma educação à bala que os força sob os pilares do silêncio, da penitência, da humilhação, do luto que não pode ser vivido. Conforme argumenta Boaventura de Sousa Santos, “sem direitos de cidadania efetivos, a democracia é uma ditadura mal disfarçada” (SANTOS, 2011, p. 125).


O papel do Estado sob a égide do Ultraliberalismo é tão descaracterizado de suas funções constitucionais que se tornam usuais a proliferação de discursos demagógicos de políticos vendidos aos interesses empresariais, tais como que atentados terroristas e massacres poderiam ser evitados se os cidadãos, inclusive professores, estivessem armados para se contraporem a esses ataques. Nessa nova concepção econômica, política e militar, o monopólio da segurança pública não pertence mais ao Estado, mas sim ao cidadão-consumidor que pode se armar para se defender das agressões criminosas. Ora, a partir da flexibilização do porte de armas, o índice de atentados aumentará ainda mais, pois não há controle eficiente da circulação social desses arsenais. Dessa maneira, é conveniente que ocorram mais incidentes fatais, movendo a roda do medo, da reatividade, da agressividade, em um ciclo interminável. O Leviatã é substituído pelo laissez-faire armamentista, quem tem mais armas tem mais chances de sobreviver na guerra civil do caos. Contudo, as garras violentas desse modelo de Estado permanecem afiadas para eliminar pessoas descartáveis na lógica do fascismo de mercado. Para Marildo Menegat, A engenharia da indústria da morte é a derrota da política, ou seja, a crise da legitimação da ordem e a impossibilidade de se manter a ordem burguesa sem superá-la em seus fundamentos.

O lobby pela facilitação do porte de armas não apenas agrada aos acionistas da indústria bélica, mas também dá vazão ao impulso necrófilo de uma grande parcela da população brasileira que encontra no culto à violência sua mesquinha razão de ser. Signos da violência totalitária povoam a consciência raivosa desse tipo de gente. Chega-se ao cúmulo de se afirmar que não cabe à polícia proteger o cidadão, pois ele mesmo deve realizar tal função, por isso a necessidade de armá-lo. O desgoverno fascista anseia promover uma guerra civil, na qual cada ânimo aflorado será motivo para executar um desafeto.

As forças militares ao serviço do Estado Assassino e de seus asseclas empresariais executam trabalhadores, pais de família, pessoas pobres que lutam por sobrevivência em nosso sórdido regime capitalista, desregulado e produtor da miserabilidade endêmica. Quando tropas do exército, em nome do combate ao crime organizado, metralham pessoas comuns, isso não é um acidente, mas um exercício planejado e calculado do seu arbítrio sanguinolento, a representação visível do ódio da elite plutocrática em relação aos pobres, destituídos de toda cidadania e direito ao viver. O poder judiciário corrobora esse modus operandi, pois considera que estamos em uma situação de guerra e atingir civis é inevitável, isto é, os famigerados danos colaterais. Quando assassinatos praticados pela máquina letal do Estado são, apesar de todos os esforços contrários, não apenas moralmente injustificáveis, mas também tecnicamente injustificáveis, desponta a sofisticação retórica dos tribunais de justiça para defender e legitimar o horror, que atende, nesse contexto, pelo nome de imunidade qualificada, que protege agentes do governo de serem responsabilizados pessoalmente por violações à Constituição e à lei em operações, a não ser que seja uma violação de direito que, no momento do ato, se mostrasse claramente evidente.


A classe alta se regozija perante as mortes das pessoas comuns, eliminadas pelas armas de um poder necrófilo que necessita da dor, da humilhação e da submissão dos proletários para que se sinta bem em sua egoísta zona de conforto. Difunde-se usualmente a narrativa de que existe uma Internet oculta na qual bilionários extravasam sua sanha necrófila financiando assassinatos de pessoas comuns, pelo prazer de exercer o poder de morte sobre elas. Contudo, nem é necessário tanto investimento, pois já no cotidiano concreto a plutocracia financia a eliminação física dos indesejáveis, para tornar a cidade mais limpa e aberta para a circulação dos seus automóveis e mercadorias luxuosas. O poder executivo do Estado Assassino não se envergonha de ele mesmo abraçar uma metralhadora ou fuzil e com tais armas fazer um gesto terrível de triunfo para as câmeras. Um governador cometer a atrocidade de comandar uma operação de extermínio em um helicóptero é o sinal da total degradação de um cargo político. Um misto de patetice, insanidade e crueldade se conjugam no ânimo de um tal tresloucado que se regozija ao ver corpos abatidos como em um videogame. A arma de fogo é o grande fetiche do fascista, moralmente miserável. Após o seu sanguinário passatempo, esse animal-político relaxa do seu ofício diário com sua amada família em um fim de semana em um hotel luxuoso. Não seria de estranhar caso tal assassino engravatado, típico autoproclamado “cidadão de bem” comungasse hipocritamente em uma igreja faustosa a celebração dos seus feitos necrófilos. Matar e rezar em um único dia. Esse é o fascismo puro. Contudo, esses psicopatas governamentais só posam corajosamente ladeados de seguranças. Caso fossem atirados em uma zona deflagrada tremeriam vergonhosamente. É muito fácil posar de poderoso quando se está em uma rede de proteção.

Os fascistas brasileiros, apesar das suas atitudes agressivas e virulentas, vivem sob o medo constante dos fantasmas da esquerda; com efeito, pensam mais na esquerda, imputada como o mal radical, do que nos seus próprios projetos políticos, insanos, doentios, reptilianos. São fanfarrões que só se sentem como homens quando estão entre os seus pares. A técnica de desviar a atenção da opinião pública através de factoides para escamotear sua ausência de ideias é uma grotesca afronta ao espírito de esclarecimento. Repete-se deliberadamente o erro de se associar favela com criminalidade. Nas cúpulas empresariais encontramos mais delitos reunidos do que em toda célula marginal. De nada adianta combater o narcotráfico sem que se combata as milícias, muito mais perigosas para a ordem pública, pois promiscuamente associadas ao poder estatal. Os grandes narcotraficantes transportam suas mercadorias em aviões das forças armadas, talvez com a anuência do poder executivo. Mesmo que se vislumbre eficácia em desbaratar o crime organizado com ações violentas, se não houver mudança nas relações socioeconômicas as bases para o fermento da criminalidade endêmica continuarão a se perpetuar. Contudo, para o establishment reacionário não cabe qualquer transformação na estrutura sociopolítica, apenas repressão incondicional ao crime, em uma lógica acanha que volta e meia apresenta seus problemas.


Quem pagará pela miséria criada sobre as vidas dos inocentes executados pela máquina necrófila da gestão fascista do Estado Assassino? Não há reparação possível, a ferida, o medo, o terror permanecerão talvez para sempre nas almas dos seus familiares, abandonados ao acaso pela crueldade dos gestores da máquina de morte de nosso fascismo. Os “cidadãos de bens” que aplaudem as operações assassinas dos soldados não demonstram nenhuma empatia diante de todo esse sofrimento, celebram-no, na verdade, pois assim são menos pobres ocupando um lugar no mundo que pretensamente deve ser destinado para maior satisfação dos plutocratas. Para os fascistas assépticos, pessoas pobres só servem quando são úteis e se encontram em situação de submissão, mas quando se empoderam e ousam vivenciar a felicidade, são perigosas. Em uma vida plena, a pessoa jamais consegue experienciar a felicidade de maneira idiota, mas sempre em abertura para com o mundo e os outros. Já o fascista, plenamente convertido ao credo econômico ultraliberal, não é capaz de aceitar que o bem-estar se realize nos indivíduos que não fazem parte do seu círculo autocentrado de contatos. O fascista ultraliberal é egoísta, covarde e incapaz de morrer pela pátria. Se enrola sordidamente com a bandeira nacional, mas nada faz pelas instituições brasileiras.

Apenas favelas são alvejadas nessas operações policiais assassinas, que somente visam impor medo e incerteza sobre as populações pobres, colocando em risco as vidas de pessoas cujas histórias são tão legítimas como as de um burguês protegido pelo poder financeiro, pelo poder militar e pelo poder jurídico. Sabemos claramente que os grandes escritórios do crime organizado se encontram nos condomínios de luxo, em igrejas-empresas-da-fé e nos gabinetes de parlamentares escroques. Quando a operação policial ocorre na favela, a truculência é a tônica, quando a ação ocorre em mansões e apartamentos nos bairros nobres, é só gentileza para com os seus distintos membros. Imaginemos o escândalo inimaginável que seria um soldado em um helicóptero metralhar distintos alvos humanos em um condomínio de luxo. Milicianos estão mais próximos (não apenas fisicamente) de figuras políticas do que pode imaginar o senso comum, e isso não é contingência. Crianças são alvejadas em escolas e tudo parece normal para a acéfala opinião pública, cúmplice dos crimes do comitê fascista no poder, e assim uma educação pautada pelo medo marca a trajetória de vida das pessoas desprovidas de visibilidade social. Para Jessé Souza,
O excluído, majoritariamente negro e mestiço, é estigmatizado como perigoso e inferior e perseguido não mais pelo capitão do mato, mas, sim, pelas viaturas de polícia com licença para matar pobre e preto. Obviamente, não é a polícia a fonte da violência, mas as classes média e alta que apoiam esse tipo de política pública informal para higienizar as cidades e calar o medo do oprimido e do excluído que construiu com as próprias mãos. E essa continuação da escravidão por outros meios se utilizou e se utiliza da mesma perseguição e da mesma opressão cotidiana e selvagem para quebrar a resistência e a dignidade dos excluídos (SOUZA, 2019, p. 88)

A soberania clássica reconhecia o invasor estrangeiro como o inimigo externo a ser combatido em nome da preservação da ordem pública. A partir da submissão do poder do Estado ao capital financeiro global, a luta dos aparatos repressivos se direciona sobre as massas anônimas economicamente inviáveis, aqueles que somente servem como carne de canhão para a satisfação instrumental da plutocracia em suas diversas ramificações no tecido político. São esses poderes reacionários do capitalismo tardio que garantem ou suspendem o direito de vida dessas massas desprovidas de qualquer segurança social e moral. Dessa maneira, as forças policiais e as tropas militares, comandadas pelos agentes da destruição em uma cruenta política de higienização social reconhecem nos pobres, nos favelados, nos pretos, nos periféricos, nos desempregados e nos invisíveis desse sistema excludente os grandes inimigos do fluxo do poder que não relevantes para a organização social.

A direita reacionária se caracteriza pela necrofilia, pela intolerância, pela negação do adversário e do contraditório, pelo anti-humanismo, pela truculência, pelo armamentismo, pela hipocrisia do falso moralismo, pela glorificação da ignorância, pela legitimação da psicopatia. Tais características são facilmente percebidas quando um dos adeptos dessa agenda niilista ascende ao poder, seja executivo, legislativo ou judiciário. A conjugação desses fatores é a receita para a morte da democracia, a qual, com todas as falhas institucionais que nela existem, se constituiu como uma das mais razoáveis formas de governo em nossa trajetória política modernizante. A direita reacionária não aceita o debate, antes ama o silêncio sepulcral. Essa direita xucra nem mesmo ama a pátria, tal como se pavoneia ridiculamente. A direita acéfala ama apenas sua própria identidade, seu ego inflado, sua propriedade privada, talvez sua família, desde que ela não se desvie do reto caminho do reacionarismo social. O fato de uma pessoa adotar uma agenda conservadora não a torna uma imbecil. A imbecilidade se dá na recusa ao saber, ao esclarecimento, ao esforço pessoal de pensar por conta própria, sem acreditar piamente em tudo o que ideólogos e correntes de redes socais propagam despudoradamente.

Os psicopatas no poder não reconhecem os cidadãos como pessoas, mas como coisas. Toda a sanha em se flexibilizar as regulações ambientais e trabalhistas apenas satisfaz o credo mercadológico da lucratividade para a casta empresarial, sempre distanciada dos interesses sociais genuínos. É fundamental que se quebre a lógica do capital que coloca a vida humana ao serviço das forças obscuras do mercado. Para isso não basta a ação parlamentar de partidos comprometidos com a emancipação social das classes subalterna, em uma tentativa hercúlea de civilizar a barbárie capitalista. Nem mesmo as articulações sindicais são suficientes para moderar a força avassaladora do mercado. Urge a mobilização multitudinária nas ruas em ações descentralizadas, ubíquas, que confundem os planejadores da hegemonia autoritária do governo-gabinete das negociatas empresariais. Ações revolucionárias não ocorrem nas assembleias parlamentares, mas nas ruas, tomadas pelo grande corpo vivo de pessoas unidas pela democracia radical, incontrolável.

Na contestação da ofensiva fascista, o trabalho parlamentar dos partidos progressistas deve servir para chancelar institucionalmente a luta dos coletivos sociais em prol da quebra do desgoverno do grande estelionatário, amigo de militares conservadores e mancomunado com as autoridades milicianas. Medidas especificas auxiliam no esgotamento das forças financeiras dos operadores do regime necrófilo, como boicotes aos produtos e serviços de empresas que apoiam esse regime de idiotas, mas a ação mais poderosa reside na efetivação da greve geral que paralisa todas as atividades estruturais imprescindíveis para a realização dos desígnios capitalistas, que não hesita em se aproveitar da máquina fascista do Estado Assassino para reprimir os dissensos. Qualquer manifestação coletiva de divergência em relação aos imperativos de governos anti-humanistas e reacionários é estigmatizada como ação orquestrada de viciados e vagabundos. Um presidente energúmeno acusa manifestantes de idiotas úteis, mas ele mesmo é o grande idiota útil do mercado financeiro, que não hesitará em retirá-lo do cargo se ele não realizar os devidos desígnios de satisfação do grande capital. Reconhecer dignidade e moralidade em um presidente desse nível tão baixo de consciência política é rebaixar a razão ao nível da lama, afinal, essa figura virulenta e niilista nada mais é que uma marionete do mercado, que acredita, no entanto, ser autônoma em suas decisões. As fezes misturam-se ao seu sangue no decorrer de sua vida medíocre. Um governador biônico vilipendia professores e estudantes que protestam contra os cortes públicos em educação acusando-os de baixo desempenho, mas ele mesmo apresentou desempenho pífio como professor em suas aventuras pedagógicas de outrora. A sustentação ideológica das plataformas políticas desses mandatários reacionários exige altas dosagens de fabulações e histrionismos para que o vazio das suas propostas conquiste efetividade, pois as suas legiões de seguidores não foram enganadas ou manipuladas por esses disparates demagógicos, mas quiseram acreditar piamente nessas emissões como se fossem a expressão da verdade divina, em uma grotesca submissão da razão ao obscurantismo mais vil. Ninguém foi enganado, o eleitor reacionário quer o abismo como organização política. A nova expressão do fascismo requer assim uma associação com o niilismo absoluto, pois tal modus operandi exige não apenas o poder destruidor da ordem estabelecida, mas acima de tudo negar tudo aquilo que existe. O fascismo se revitaliza com o deserto da realidade, vazia.

REFERENCIAS
GRAHAM, Stephen. Cidades Sitiadas: o novo urbanismo militar. Trad. de Alyne Azuma. São Paulo: Boitempo, 2016.
MENEGAT, Marildo. Estudos sobre ruínas. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez, 2011. SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: da escravidão a Bolsonaro. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019.


RENATO NUNES BITTENCOURT é Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ/Coordenador do Curso de Administração da FACC-UFRJ.

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